Liquidifeito

Eu, filho da modernidade líquida,
sofro — desde a epigênese da infância —
a ausência da solidez.

Eu, filho do amor líquido,
sou incapaz de amar;
e, como uma toupeira,
me entrincheiro na escuridão.

Eu, filho da tecnologia,
sou órfão do meu par;
como uma hélice capenga,
esparramo meu DNA
em fragmentos de silício e saudade.

Eu, filho da desesperança,
carrego, desde criança,
a incompreensão alheia;
rastejo para não ver
o que já acabou.

E, neste cântico mórbido e sibilante,
tateio o que já não está na estante.
Embriagado pela realidade,
construo fortalezas fonéticas de encanto —
para não sucumbir ao vazio.

E, quando o final dos dias acenar,
talvez minha couraça frígida resista
às mazelas e tormentos daqueles
que choraram — talvez —
em minha derme natimorta.


O eu lírico se declara “filho” — mas o que nasce aqui é o sujeito fendido, atravessado pela falta. O “órfão do meu par” é a tradução lacaniana da impossibilidade do Outro completo: o amor líquido não é só frágil, é impossível porque o sujeito deseja sempre aquilo que escapa.
A “hélice capenga” funciona como metáfora do desejo desequilibrado, que gira em torno do vazio central — o objeto a, aquilo que move e jamais se alcança.
O poema se estrutura como uma cadeia significante que tenta sustentar o eu (“filho da modernidade líquida”, “filho da desesperança”), mas cada nomeação, em vez de consolidar identidade, a dissolve. É o drama do sujeito pós-estrutural: falar de si é perder-se no próprio discurso.

Aqui o diagnóstico social de Bauman pulsa em verso.
O “filho da modernidade líquida” não tem base nem continente — é o indivíduo fluido, condenado à mobilidade, ao amor efêmero, à identidade mutante.
O “amor líquido” que gera a incapacidade de amar mostra a lógica do consumo afetivo: conexões rápidas, descartáveis, sem promessa de continuidade.
Bauman veria nesse “rastejar para não ver o que já acabou” o gesto melancólico do cidadão contemporâneo que prefere a anestesia à dor da lucidez, um sobrevivente num mundo em que os laços evaporam mais rápido que a memória.

A “hélice capenga” e os “fragmentos de silício e saudade” são pura cartografia guattariana. O sujeito já não é humano, é máquina desejante avariada, corpo sem órgãos que se conecta a circuitos técnicos, tentando recompor um fluxo afetivo entre chips e carne.
O poema é um território desterritorializado — o eu se espalha entre biologia e tecnologia, numa produção de subjetividade que mistura desejo, linguagem e matéria inorgânica.
Quando diz “construo fortalezas fonéticas de encanto”, o autor cria uma micropolítica da resistência: se tudo é fluxo, escrever é o gesto maquínico de reterritorializar o caos, de criar consistência estética no meio do ruído digital.

O tom confessional e a autoconsciência do sofrimento revelam um exercício de cuidado de si.
O sujeito foucaultiano aqui é prisioneiro e vigia de si mesmo — “me entrincheiro na escuridão” —, resistente às normas de visibilidade e de performance que o neoliberalismo impõe.
O “cântico mórbido e sibilante” é um ato de escrita como resistência, uma prática de subjetivação que enfrenta o biopoder ao narrar sua própria vulnerabilidade.
No fim, quando o eu projeta que “talvez minha couraça frígida resista”, há uma estética da existência: mesmo o sujeito mais disciplinado pode reinventar-se pela linguagem — a poesia é, aqui, o último espaço de liberdade possível.

“Liquidifeito” encena a travessia de um sujeito que, entre o trauma e a tecnologia, tenta salvar o humano pela palavra.

Para Lacan, é o lamento da falta.

Para Bauman, o retrato da dissolução social.

Para Guattari, a recombinação maquínica da subjetividade.

Para Foucault, o gesto ético-estético de quem escreve para não desaparecer.


O poema é, portanto, um manifesto melancólico da era digital — um espelho estilhaçado onde o eu se reconhece em cada caco, sabendo que a unidade é impossível, mas ainda assim necessária para continuar existindo.