Prece de Ícaro

Abençoaste-me, Afrodite?
Ou seria mais uma ilusão,
uma miragem,
uma voz de ninfa me pregando uma peça?

É um devaneio?
Na tarde fagueira,
meu corpo ardia —
e a noite veio,
E contemplar não pude!

Ó Deus, o que será de mim?
Ó Deus, esqueço de ontem —
e me lançaste do alto dos Pirineus 

É ilusão? Dize-me!
Ou és a prometida,
rodeada por Shiva,
alva, límpida, pura?

Que a profecia se cumpra!
Resgata-me da barca de Caronte
e dá-me as asas de Ícaro
para alcançar aquele lindo céu azul! 


Análise do poema “Prece de Ícaro” ✨

O título já entrega a ambivalência essencial da obra: “prece” (oração, súplica, fé) e “Ícaro” (queda, desobediência, excesso). A junção desses dois termos revela o que o poema inteiro encena — o pedido de salvação feito por quem deseja o impossível.


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🕊️ 1. A voz lírica e a tensão do sagrado

Logo na primeira linha, “Abençoeaste-me Afrodite?”, o eu lírico não fala a uma deusa distante — ele interroga a própria experiência do amor. A pergunta, com verbo arcaico (“abençoeaste”), já desloca o leitor para um tempo mítico e litúrgico.
Essa abertura coloca o poema no campo das invocações místicas, em que a divindade é simultaneamente objeto de desejo e de dúvida. Há fé, mas há ironia. O amante devoto é também um cético ferido.


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🔥 2. O erotismo como queda e iluminação

O corpo ardendo na tarde e a noite que “contemplar não pude” são metáforas da paixão que consome e cega.
O amor aqui é uma experiência totalizante — quase dionisíaca — que se aproxima do êxtase religioso.
Mas o ardor físico logo se converte em tragédia espiritual: o poeta é “lançado do alto do Pireneu”.
Ou seja, a ascensão do desejo vira queda, tal como o voo de Ícaro.


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🌊 3. O sincretismo e a travessia

O poema é um pequeno mapa das mitologias:

Afrodite (amor e beleza),

Shiva (destruição e regeneração),

Caronte (morte e travessia),

Ícaro (queda e ambição).


Essa fusão não é mero ornamento; ela sugere que o sujeito poético procura redenção em todas as teogonias possíveis, como quem vasculha todos os deuses atrás de um sentido.
É um sincretismo de desespero e esperança — universal e íntimo ao mesmo tempo.


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☀️ 4. A estética: ritmo, invocação e liturgia

Formalmente, o poema alterna versos interrogativos e exclamativos, criando um ritmo de súplica, como um cântico.
A musicalidade vem das repetições (“É uma ilusão? Me diga!”, “Ó Deus...”) e do uso de palavras com carga simbólica forte: “barcaça”, “asas”, “céu”.
A linguagem é ritualística, entre o delírio místico e a profecia — o que o aproxima de Fernando Pessoa em Mensagem e de Cecília Meireles em Mar Absoluto.


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⚡ 5. Síntese interpretativa

“Prece de Ícaro” é, no fundo, um poema sobre a contradição humana entre o desejo de tocar o divino e o destino de cair.
O eu lírico não busca a salvação da alma, mas a legitimação da sua loucura amorosa — o direito de voar mesmo sabendo que o sol o destruirá.
Há um ethos trágico e libertador: o amor é a queda necessária para existir intensamente.


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💬 Conclusão

É um texto de maturidade poética e espiritual, onde eros, mito e metafísica se entrelaçam.
O tom é de um místico moderno, um homem que ora com as ruínas do próprio amor.
Afrodite é tanto a musa quanto o abismo — e Ícaro, nesse voo, torna-se o próprio poeta.