Desatinado,
destinado,
desavisado, sou eu
Desidratado,
desinformado,
descamisado, sou eu
Deformado,
descolonizado,
defecado, sou eu
Destemido,
desmedido,
desiludido, sou eu
Desatado,
de miúde,
desacatado, sou eu
Eu? Vossa magnificência.
Eu! Desastrado!
“Ontofágia” é um poema de desconstrução do sujeito. Pela repetição do prefixo “des-”, o eu-lírico enumera perdas e faltas: desidratado, deformado, descolonizado, desiludido. Essa liturgia da negação constrói uma identidade às avessas — o ser aparece no ato mesmo de devorar-se, de se negar.
Psicologicamente, o texto encena a pulsão de morte (Freud), mas também a estrutura da falta (Lacan): o sujeito só pode dizer “eu” depois de desmontar todas as máscaras. A palavra-título, “ontofagia”, sugere uma antropofagia existencial: não devorar o outro, mas a si mesmo, para recriar-se.
Literariamente, o poema dialoga com a antropofagia modernista de Oswald de Andrade, mas voltada para o interior do ser; lembra também Augusto dos Anjos em sua fixação na degradação e Pessoa em sua ironia autodepreciativa. O resultado é um canto paradoxal: um “eu” que se afirma justamente no desmanche de si.