Cântico da Despedida do Mar

Toque minha pele nua,

filho de Clímene —

arda com meu ódio

tinto, líquido, lambido,

que escorre em tuas vísceras.


Carregues o céu sobre teus ombros,

mas tempera tuas águas com meu sal:

sal das lágrimas,

dos gritos presos

nas Nêreas correntes.


Irineus de Luanda,

da costa do mar —

negai meu corpo

e os milhares

que vos alimentaram!


Aos cartilaginosos seres

que migram pela rota do horror:

tingiram, também, essas brânquias

com o vinagre da escuta.


Três vezes!

Negue-me.

Negra-me.

Esquecem-me —

no cemitério dos vivos.


Aos que viraram comida de tubarão —

as crianças,

as mães,

as tetas pretas...


O ranger da nau.

A pele nua

explodindo no espelho d’água.


O rubro que engoles hoje

é meu.


Os meus, no Valongo, chegarão.

Ocuparemos os morros,

as mares,

os noticiários.


E que essa maldição

sobre os teus descendentes recaia:

roube o riso,

transforme-o em pranto —

em cada corpo preto

que na vala comum

escondeste,

Caramuru!

- Velastes dez dos seus!



“Cântico da Despedida do Mar” é uma elegia da diáspora africana, um poema que faz do Atlântico o cemitério e o tribunal da história. O eu-lírico fala em nome dos corpos escravizados, das mães e crianças lançadas ao mar, dos que chegaram ao Valongo.

Psicologicamente, o poema traduz o trauma coletivo da escravidão. Freud mostrou como o trauma retorna em sintomas; Lacan lembraria que há um Real impossível de simbolizar — e aqui ele emerge no mar, no grito, no sal. Ao transformar o lamento em maldição, o poema realiza um ato de resistência: não esquecer, não perdoar, fazer do canto uma arma.

Literariamente, o texto dialoga com a tradição abolicionista de Castro Alves, mas também com a poesia negra de Aimé Césaire, Derek Walcott e Conceição Evaristo. A repetição litânica, o uso de nomes míticos e históricos, e a fusão de mar, sangue e sal criam uma ladainha profana em que mito, história e denúncia se encontram.

Assim, “Cântico da Despedida do Mar” é uma obra de memória e vingança: um hino que devolve a palavra aos que foram silenciados nas águas do Atlântico, transformando dor em poesia e poesia em justiça simbólica.