Prece da Resiliência

 Existir, aos trancos,

segurando nos fiapos de um barranco

aos solavancos, hei de re-existir!


Mesmo com os pés mancos, 

assistindo aos saltimbancos

que dilapidam nosso erário,

aos solavancos, hei de resistir!


Numa tarde magoada, 

na manhã embriagada,

ouvindo lamúrias, hei de reexistir!


Passarinhando, alimento-me

das frias notas de pensamentos

da utopia encardida que me alenta, 

hei de existir!


No final, na hora marcada, 

no suspiro derradeiro

-Jaz o visionário na imortalidade de suas pretéritas ações!

- Permita-me, ó Deus, que resista!



1. “O Livro de Jó” (Bíblia)

A súplica final “Permita-me, ó Deus, que resista!” faz uma referência implícita ao tipo de clamor que se encontra em textos bíblicos como o Livro de Jó, em que o protagonista busca a intervenção divina para suportar as provações e desastres que caem sobre ele. Jó é um símbolo clássico de resistência e fé em meio ao sofrimento. Essa invocação divina no final do poema ecoa essa tradição.

Paralelo: A resistência à dor e o desejo de continuar, mesmo frente a tudo que parece conspirar contra, remetem a várias passagens do livro de Jó, que clama a Deus por respostas e por forças para resistir.

2. “Poemas de Resistência” (Carlos Drummond de Andrade)

A ideia de "re-existir" e "resistir", associada à luta contra as injustiças, faz eco à obra de Carlos Drummond de Andrade, especialmente seus poemas que tratam da resistência ao tempo, à política opressora e à inevitabilidade do fracasso. Drummond, em seus poemas como “Sentimento do Mundo”, muitas vezes explora o esgotamento e o embate entre o indivíduo e as forças maiores do mundo.

Paralelo: A resistência de Drummond diante da injustiça social, em especial a crítica às estruturas que exploram o povo, como no verso "que dilapidam nosso erário", lembra as observações de Drummond sobre a corrupção e o desperdício de recursos.

3. “Vidas Secas” (Graciliano Ramos)

A ideia de “existir aos trancos, segurando nos fiapos de um barranco” pode ser comparada às lutas de personagens como Fabiano em "Vidas Secas", de Graciliano Ramos. Fabiano luta, com todas as dificuldades, para sobreviver em um ambiente opressivo e hostil. A imagem de resistência e persistência frente às dificuldades da vida remete à luta pela sobrevivência que caracteriza a obra de Ramos.

Paralelo: Tanto o poema quanto “Vidas Secas” falam sobre resistir aos golpes da vida, a existência em meio a condições adversas e a luta por dignidade em ambientes devastadores.

4. “Utopia” (Thomas More)

A menção à “utopia encardida” alude diretamente ao conceito de utopia, idealizado por Thomas More em sua obra clássica. A palavra "encardida" aqui pode sugerir a deterioração ou a difícil realização dessas visões idealizadas de um mundo perfeito. Isso também pode remeter à visão crítica de autores posteriores que, como More, exploraram os limites entre idealismo e realidade.

Paralelo: A utopia como uma ideia inalcançável, mas ainda assim necessária para continuar resistindo e sonhando, reflete um diálogo com essa tradição literária de imaginar mundos melhores, mas, ao mesmo tempo, reconhecer sua dificuldade de concretização.

5. “Os Saltimbancos” (Teatro e Música Popular Brasileira)

A imagem dos “saltimbancos” pode remeter ao espetáculo popular, mas também há uma intertextualidade implícita com a peça musical “Os Saltimbancos”, uma adaptação do conto “Os Músicos de Bremen”, dos irmãos Grimm, feita por Sérgio Bardotti e Chico Buarque no Brasil. Na peça, os animais se unem para resistir à opressão de seus donos, uma metáfora para a luta por liberdade e justiça.

Paralelo: No poema, os “saltimbancos” são aqueles que dilapidam o erário, uma crítica aos corruptos e aproveitadores, em oposição à visão heróica dos personagens da peça de Chico Buarque, que lutam contra a exploração. Ambos os contextos sugerem uma crítica social.

6. Poesia Existencialista (Jean-Paul Sartre, Albert Camus)

A questão da resistência frente a um mundo caótico ou injusto dialoga com o pensamento existencialista, especialmente as ideias de Jean-Paul Sartre e Albert Camus. A luta contra o absurdo do mundo, a determinação de “reexistir” ou “resistir” frente a adversidades intransponíveis, lembra o conceito de revolta de Camus, exposto em “O Mito de Sísifo”.

Paralelo: Camus defende que, mesmo diante da percepção de que a vida é absurda e sem sentido, o homem deve resistir e continuar a viver, enfrentando o absurdo. O poema parece refletir essa mesma ideia ao insistir na reexistência mesmo quando tudo parece indicar o contrário.

7. Romantismo (Lord Byron, Álvares de Azevedo)

A atmosfera melancólica e o tom de luta solitária diante das injustiças remetem à poesia romântica, especialmente Lord Byron e Álvares de Azevedo. A imagem do "visionário na imortalidade de suas pretéritas ações" lembra a noção romântica de que o gênio ou o herói se perpetua através de suas obras e seu legado, mesmo que não encontre alívio imediato em sua vida terrena.

Paralelo: Tanto Byron quanto Azevedo frequentemente escrevem sobre o indivíduo que se vê incompreendido pelo mundo, mas que ainda assim luta pela eternidade através de suas ideias ou de sua arte, o que parece ressoar na imagem do visionário do poema.

8. “Passarinhando” (Manoel de Barros)

O verbo “passarinhando” evoca a poética de Manoel de Barros, um poeta conhecido por sua ligação com a natureza e por criar novos significados a partir de palavras simples e comuns. Barros utiliza o verbo “passarinhar” para se referir à liberdade e leveza dos pássaros, bem como à maneira de viver em contato direto com o mundo natural, alheio às opressões do cotidiano.

Paralelo: O uso de “passarinhando” no poema traz à tona a simplicidade e ao mesmo tempo a profundidade de viver, um refúgio no contato com a natureza para alimentar-se da leveza que, de alguma forma, sustenta o eu lírico em sua resistência.

9. “Quarto de Despejo” (Carolina Maria de Jesus)

A menção a “fiapos de um barranco” também pode ser vista como uma intertextualidade com Carolina Maria de Jesus, que em sua obra "Quarto de Despejo" retrata as duras condições de vida nas favelas de São Paulo. A imagem de precariedade e luta por sobrevivência também aparece fortemente em sua obra, com descrições de resistir à fome, à miséria e à injustiça social.

Paralelo: O barranco como uma metáfora de um espaço instável e a luta pela subsistência em condições adversas ressoam com a descrição da vida marginalizada nas crônicas de Carolina Maria de Jesus.