Ó Deus, me leve
Ó Deus, me leve
Vejo meu corpo rutilante
Sepultado pela terceira vez...
Ó Deus, me leve
Ó Deus, me leve
Corrija as frias carnes deste cadáver,
Rouco de tanto sangrar, compadecido.
Ó Deus, me leve
Ó Deus, me leve
Rangidos de sorrisos insuperáveis,
Desculpas costuradas na derme.
Ó Deus, me leve
Ó Deus, me leve
Estes sentimentos enclausurados —
Alguém, afinal, se preocupou?
Ó Deus, me leve
Ó Deus, me leve
Em letras tortas, quase mortas,
Registro mais uma lamúria.
Ó Deus, me leve
Ó Deus, me leve
Só me leve!
1. Livro de Jó (Bíblia)
A súplica a Deus em busca de alívio para o sofrimento pode ser comparada ao Livro de Jó, da Bíblia, onde o protagonista passa por intensas provações e questiona a razão de seu sofrimento. Jó frequentemente clama a Deus para entender o motivo de suas dores e se vê diante de uma aparente indiferença divina. No poema, o eu lírico também suplica a Deus, esperando que Ele leve suas dores, mas não encontra alívio, refletindo uma sensação de abandono ou de resposta não recebida.
Paralelo: Jó 6:8-9 — “Oh, se Deus me concedesse o meu desejo, se ele atendesse à minha súplica! Se ele se agradasse em esmagar-me e em soltar a sua mão e exterminar-me!”.
2. “O Corvo” (Edgar Allan Poe)
Há uma possível intertextualidade com o poema "O Corvo", de Edgar Allan Poe, que também retrata um eu lírico preso em um ciclo de dor e luto, clamando por respostas ou alívio para seu sofrimento. No poema de Poe, o corvo repete "Nunca mais", enquanto no seu poema há a repetição do refrão "Ó Deus, me leve", criando uma similaridade no uso da repetição para reforçar o desespero e a impotência diante da dor.
Paralelo: Tanto em "O Corvo" quanto no poema, os sujeitos líricos buscam algum tipo de libertação do sofrimento (Poe: o luto pela perda de Lenore; seu poema: o desejo de alívio através da morte). A repetição no texto e a resposta incessante do corvo em "Nunca mais" marcam a impossibilidade de obter o consolo desejado.
3. “A Divina Comédia” (Dante Alighieri)
Em "A Divina Comédia", Dante faz uma jornada pelo inferno, purgatório e paraíso, sendo guiado por Virgílio e Beatriz. Em determinados momentos, especialmente no Inferno, Dante clama por intervenção divina e enfrenta cenas de sofrimento eterno. A repetição no poema de um apelo por alívio pode ser vista em paralelo com as figuras condenadas no Inferno de Dante, que suplicam por libertação, mas são eternamente punidas.
Paralelo: As almas no inferno clamam por fim à sua dor, e a ideia de aprisionamento, sofrimento físico e espiritual também ressoa no eu lírico de seu poema. A imagem de "sentimentos enclausurados" reflete o aprisionamento existencial que muitos dos condenados em Dante experimentam.
4. Poetas Existencialistas (Fernando Pessoa, Álvaro de Campos)
A repetição de uma súplica que parece não ser ouvida e a sensação de uma vida insuportável remetem à poesia de Fernando Pessoa, especialmente sob o heterônimo de Álvaro de Campos, que frequentemente expressa um sentimento de cansaço existencial e um desejo de fugir da vida e da realidade.
Paralelo: Poemas como "Tabacaria" e "Lisbon Revisited" (Álvaro de Campos) exploram essa angústia existencial e a incapacidade de encontrar sentido na vida. Em "Tabacaria", Campos diz: "Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade" e expressa um desejo de afastamento da vida mundana. A ideia de um "cadáver rouco de tanto sangrar" pode ser lida em paralelo ao sentimento de esgotamento e morte emocional presente na poesia de Campos.
5. “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (Machado de Assis)
A relação com a morte e a busca por compreensão do sofrimento e do sentido da vida pode evocar intertextualidade com Machado de Assis em "Memórias Póstumas de Brás Cubas". Brás Cubas narra suas memórias após a morte, refletindo sobre sua vida de maneira irônica e desencantada. O tom de desolação e, ao mesmo tempo, a tentativa de reconciliação com a morte, no seu poema, pode ser visto como um eco do modo como Brás Cubas reflete sobre sua própria existência.
Paralelo: "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria" (Brás Cubas). A ideia de uma vida cheia de sofrimento e desprovida de significado ecoa nas lamúrias do eu lírico do poema.
6. "A Morte de Ivan Ilitch" (Liev Tolstói)
A morte física e a reflexão sobre o sofrimento podem lembrar a obra de Tolstói, "A Morte de Ivan Ilitch". Nessa novela, Ivan Ilitch enfrenta uma morte lenta e dolorosa, refletindo sobre o sentido da vida e a negligência emocional dos que o cercam. No poema, a frase "Alguém, afinal, se preocupou?" remete a um sentimento semelhante ao de Ilitch, que, à medida que enfrenta sua morte, percebe a indiferença dos outros para com seu sofrimento.
Paralelo: Ivan Ilitch sente-se traído e abandonado por seus amigos e familiares que tratam sua morte como um evento corriqueiro. A ideia de "sentimentos enclausurados" também dialoga com o isolamento emocional que Ilitch experimenta.
7. Misticismo e Poetas Românticos (William Blake, Lord Byron)
A súplica a Deus e o desejo de transcendência também podem ser interpretados em termos de misticismo e romantismo. Poetas como William Blake e Lord Byron frequentemente exploravam a relação entre o homem e o divino, bem como a busca por libertação do sofrimento terreno.
Paralelo: Em obras como "O Casamento do Céu e do Inferno" de Blake, o poeta questiona a natureza de Deus e da existência, o que pode ser uma referência implícita à súplica do eu lírico no seu poema. Da mesma forma, Byron frequentemente explorava o desespero e o desejo de fuga das limitações da vida humana, como em "Manfred", onde o protagonista busca libertação espiritual e transcendência.
8. Referência ao Grito de Desespero Modernista
O poema também pode ser lido em diálogo com obras da poesia modernista brasileira e internacional, que frequentemente exploram o caos existencial e o questionamento das estruturas divinas. Poemas como "A Terra Desolada" de T.S. Eliot e a poesia de Carlos Drummond de Andrade frequentemente abordam o desencanto com o mundo e a perda de fé, especialmente em momentos de dor.
Paralelo: "A Terra Desolada" de Eliot também apresenta vozes clamando por respostas divinas em um mundo que parece ter perdido seu sentido, ecoando o sentimento de súplica que permeia seu poema.