O mato

 Mato que mata

na capoeira e na casa,

regada a cachaça...

Adentra a mata rumo

a rubra pegada, faca bastarda!

tinge a viridiana cor...

Capina o mato, ó moço!

sob o sol que mata

olho com inveja

o mato que brota

no pé trancafiado no testemunho

da esmeraldina liberdade, liberto!


  1. 1. Intertextualidade com o Modernismo Brasileiro (Mário de Andrade)

    A evocação do trabalho no campo e da natureza, junto à força simbólica do mato que brota e resiste, lembra a valorização da cultura popular e da natureza brasileira, uma característica marcante do Modernismo. Poemas como os de Mário de Andrade em “Pauliceia Desvairada” e sua prosa em “Macunaíma” trabalham com o contraste entre o homem e a natureza, assim como a resistência cultural representada pelo ambiente rural.

    Paralelo: O “mato” pode ser visto como um símbolo de uma resistência mais ampla, muito similar ao que Mário de Andrade simboliza na busca pela identidade nacional e sua relação com a terra e o meio ambiente.

    2. Intertextualidade com “O Quinze” (Rachel de Queiroz)

    A descrição do "sol que mata" e da necessidade de "capinar o mato" evoca a luta contra a seca e a sobrevivência no sertão, temas que Rachel de Queiroz explora em seu romance “O Quinze”. A obra, que se passa durante a grande seca de 1915 no Ceará, trata da batalha diária dos trabalhadores rurais para subsistir diante das adversidades climáticas, além da relação entre o homem e a terra.

    Paralelo: A figura do “mato” como algo a ser domado (capinado) sob o calor escaldante do sol reflete o mesmo dilema enfrentado pelos personagens de Rachel de Queiroz, onde a natureza pode tanto prover quanto destruir.

    3. Relação com a Literatura de Cordel e a Oralidade Popular

    O estilo simples e direto, com imagens de "capina", "cachaça" e "faca bastarda", também se assemelha à literatura de cordel, que muitas vezes celebra a vida rural, ao mesmo tempo em que denuncia as injustiças sofridas pelos trabalhadores do campo. A menção à "cachaça" pode ser lida como um traço da cultura popular, muito presente nos versos de cordel, onde o cotidiano duro é aliviado pela bebida e pela resistência do povo.

    Paralelo: Assim como os cordelistas narram as dificuldades e a resistência do povo, o poema retrata a luta contra a terra que é, ao mesmo tempo, fonte de vida e de morte.

    4. Intertextualidade com João Cabral de Melo Neto

    A associação entre a natureza e o trabalho opressor, particularmente o sol e o mato, também ecoa a obra de João Cabral de Melo Neto, especialmente em “Morte e Vida Severina”, onde o sertanejo luta pela sobrevivência contra uma terra árida e hostil. O tom seco e direto de "Mato que mata" lembra a dureza do verso cabralino, que expõe sem adornos a luta do homem contra as condições adversas do meio.

    Paralelo: Assim como em “Morte e Vida Severina”, há uma reflexão sobre a luta diária do trabalhador, onde o mato que deve ser capinado representa a vida que, paradoxalmente, é dificultada pelo mesmo ambiente natural.

    5. Símbolos de Liberdade e Opressão

    A "esmeraldina liberdade" e o "pé trancafiado no testemunho" sugerem uma metáfora que ultrapassa o contexto rural, remetendo à ideia de liberdade e prisão, talvez até de opressão social. Essa temática pode ser associada à tradição literária que aborda a luta pela liberdade, desde Castro Alves em “O Navio Negreiro”, onde a natureza se torna testemunha das injustiças sofridas, até autores contemporâneos que discutem a liberdade do corpo e da mente.

    Paralelo: O mato que brota pode representar essa liberdade incontrolável, apesar das tentativas de opressão (capina). O “pé trancafiado” lembra os grilhões do cativeiro, evocando a imagem da prisão e da resistência à opressão.

    6. Religiosidade Popular e o Mito de Liberdade

    Há também, nas entrelinhas, uma possível relação com o mito de Exu, da religiosidade afro-brasileira, o orixá das encruzilhadas e do caminho, que rege os caminhos da liberdade. O mato, ao ser capinado, perde sua liberdade natural, assim como o homem que é forçado a submeter-se às circunstâncias da vida. A faca e a cachaça, símbolos de luta e celebração, podem evocar o sincretismo religioso e o enfrentamento das forças do destino.